O cooperativismo de plataforma surgiu como uma resposta aos efeitos da ascensão de serviços ligados à economia do compartilhamento. Diversos atores desse modelo, como Uber, Airbnb e iFood, colocaram as plataformas como protagonistas da economia global. E embora tenham sido disruptivas, elas também originaram uma série de questionamentos éticos.
O quesito mais evidente está no crescimento da gig economy e os seus impactos nas relações de trabalho. Em teoria, as plataformas concedem um ambiente mais flexível aos trabalhadores, já que não há vínculo empregatício. Na prática, contudo, elas contribuíram para o crescimento dos empregos informais.
Foi nesse contexto que o professor Trebor Scholz, da universidade The New School, de Nova York, cunhou o conceito de cooperativismo de plataforma. A proposta é de um modelo de mudança estrutural na economia do compartilhamento, colocando os trabalhadores em posse das plataformas. O acadêmico publicou um livro-referência e lidera um consórcio sobre o tema.
COOPERATIVISMO DE PLATAFORMA NO BRASIL
No Brasil, o InovaCoop já publicou posts, cases e e-book para disseminar o cooperativismo de plataforma (confira ao final deste texto). Além disso, já surgiram iniciativas de incentivo, conteúdo e pesquisa sobre o modelo, como:
Em 2019, quando veio ao Brasil para palestrar no 14° Congresso Brasileiro de Cooperativismo (CBC), organizado pelo Sistema OCB, Scholz falou sobre o potencial do modelo no país:
“O Brasil é um dos países mais propícios para as cooperativas de plataforma. O Consórcio para o Cooperativismo de Plataforma adoraria apoiar o desenvolvimento das cooperativas brasileiras ajudando a coordenar seu crescimento por meio da cooperação internacional”, declarou à época.
Rafael Zanatta, mestre pela Faculdade de Direito da USP e diretor da Associação Data Privacy de Pesquisa, é um dos principais estudiosos sobre o cooperativismo de plataforma no Brasil. No artigo acadêmico “Platform Cooperativism in Brazil: dualities, dialogues and opportunities”, Zanatta analisou o desenvolvimento do modelo no país.
O estudo argumenta que o cooperativismo de plataforma no Brasil avança em duas frentes: uma institucionalizada e outra não-institucional. A primeira delas se dá no setor cooperativista institucionalizado, que opera de forma estruturada. Zanatta menciona, inclusive, o InovaCoop como exemplo deste ambiente.
Dentro desse contexto, o cooperativismo de plataforma é percebido como um impulsionador da inovação e uma oportunidade de gerar novos negócios para as cooperativas. Dando sequência a essa visão, as coops estão desenvolvendo soluções para atuar em setores em que o cooperativismo já é presente.
Assim, as plataformas se apresentam como um meio de reinvenção do cooperativismo em mercados importantes para o setor, como os ramos de crédito, agricultura, transporte e saúde.
Proposta com foco na modernização
No documento Propostas para um Brasil mais cooperativo 2023-2026, a OCB defende que o futuro do setor passa pelo apoio e estímulo ao cooperativismo de plataforma. O modelo se mostra uma opção sustentável para as novas tendências de se trabalhar em rede, conectando pessoas e as colocando no centro dos negócios.
Com isso, o cooperativismo de plataforma apresenta como vantagens a autogestão e a valorização dos trabalhadores. Assim, eles se tornam “donos dos seus próprios negócios, seja nas plataformas de compras coletivas ou na oferta de serviços por aplicativos”, argumenta o texto.
Para que o modelo possa ser potencializado, contudo, é preciso criar a possibilidade de admitir investidores-anjo em startups cooperativistas, propõe a OCB. A participação de cooperativas em sociedades não-cooperativas também é uma possibilidade a ser estudada para promover o cooperativismo de plataforma.
Outros caminhos
Como consequência dessas restrições legais ao investimento externo, Zanatta também relata o surgimento da segunda frente do cooperativismo de plataforma no Brasil, sem ligações institucionais oficiais.
A rede de apoio a essas instituições é liderada por coletivos e apoiado por organizações filantrópicas. Essas instituições ganharam força com a luta contra a gig economy, ou “uberização do trabalho”.
Os impulsos ao modelo
Em entrevista ao InovaCoop, Zanata argumenta que, no contexto de 2022, o cooperativismo de plataforma encontra três fatores impulsionadores no Brasil:
- Exaustão moral com os modelos de negócios de gigantes como Rappi, Amazon, Uber e iFood: “Há uma crítica persistente da sociedade e episódios como o monitoramento de lideranças, como o feito pela iFood, desperta ainda mais interesse por plataformas que possuem conexão com valores do cooperativismo, como dignidade do trabalhador, participação e democracia econômica”.
- Surgimento de políticas públicas locais de fomento ao cooperativismo: “Nós estamos vendo isso em São Paulo, em Porto Alegre, no Rio de Janeiro e em muitas outras cidades. Há um crescente incentivo local ao cooperativismo de plataforma e isso tende a se intensificar com políticas públicas mais estruturadas, inclusive as de facilitação ao crédito”.
- Processo de maturação de alguns projetos e experimentos iniciados entre 2019 e 2020: “Especialmente após os incentivos dados pelas Escolas de Cooperativismo, pela OCB e por projetos como InovaCoop. Agora vamos começar a ver algumas conexões entre novos empreendimentos e mercados preexistentes, como no caso de coops que oferecem serviços de software as a service em setores como transporte, logística e saúde”.
Os principais desafios atuais
Em seu artigo, Zanatta também discorreu sobre as maiores barreiras enfrentadas para o crescimento do cooperativismo de plataforma. Novamente, ele destaca as restrições regulatórias enfrentadas pelo setor em relação às possibilidades de investimento. Isso gera grandes dificuldades operacionais para financiar novas iniciativas de plataforma.
Outro argumento é que as cooperativas podem ter dificuldades para praticar atividades intermediárias digitais complexas, como gestão de dados, programação e marketing. Para o sucesso de uma plataforma, elas são tão necessárias quanto a atividade-fim da coop.
Devido às restrições de financiamento, o desenvolvimento das plataformas acaba restrito às cooperativas de grande porte, sobretudo as que atuam nos ramos de crédito, saúde e agronegócio. Coops de menor escopo, contudo, não conseguem acompanhar o ritmo, dificultando o amadurecimento do modelo de negócio.
Ainda assim, nota o pesquisador, as cooperativas preferem manter o modelo de negócios dentro do cooperativismo, em termos legais e regulatórios.
INICIATIVAS
Mesmo com as dificuldades, surgem iniciativas que buscam dar vida ao cooperativismo de plataforma:
Ciclos (Sicoob ES)
No Radar da Inovação, contamos a história da Ciclos, uma cooperativa de plataforma gestada pela Sicoob Central do Espírito Santo em seu hub de inovação. A Ciclos atua nos setores de infraestrutura, consumo e serviços.
O desenvolvimento da plataforma contou com a participação da empresa de tecnologia MindTec, que já prestava serviços à cooperativa, e da startup CleanClic, também oriunda do hub. A OCB estadual também deu apoio para a criação da Ciclos.
A cooperativa disponibiliza o acesso a três diferentes serviços:
- Planos de saúde
- Planos de telefonia e dados
- Energia limpa
Diante do sucesso, a coop almeja inaugurar um marketplace para conectar seus cooperados e expandir a atuação para outros estados.
PODD (Coopertran)
O aplicativo PODD (Pay On Demand) é uma iniciativa da cooperativa de transportes mineira Coopertran, surgida a partir da insatisfação dos motoristas com os modelos praticados pelas grandes plataformas de transporte individual.
“Hoje, os motoristas trabalham para o aplicativo. O PODD fará o aplicativo trabalhar para os motoristas”, argumentou José Aparecido Ferreira, então diretor-presidente da Coopertran, em 2020.
O PODD começou a operar em 2020, na região de Grande Vitória, no estado do Espírito Santo. Contudo, devido aos impactos da pandemia, precisou interromper as atividades no ano seguinte.
Futuro do Ramo
Fernando Lucindo, advogado especialista em direito cooperativo e digital, acredita que o amadurecimento das cooperativas de transporte passa pelo cooperativismo de plataforma.
“Veja o quanto do mercado em geral têm sido absorvido pelos negócios baseados em plataformas. Temos um caminho a percorrer, principalmente as cooperativas tradicionais. Reverbero: a transformação digital deve estar no plano estratégico das cooperativas, que devem investir na educação, inovação e cultura digital. Devem estar abertas para as rupturas de modelos que se apresentam”, reflete.
Eventos
O Brasil também será protagonista de eventos que buscam divulgar, discutir e apresentar propostas para a disseminação do cooperativismo de plataforma no país. Essa é mais uma amostra de que o modelo está passando por um processo de amadurecimento. Veja eventos sobre o tema para colocar na agenda:
- Cooptech: organizado pela Coonecta, o Cooptech 2022 será realizado dentro do WCM Expo, entre os dias 17 e 18 de outubro, no Minascentro, em Belo Horizonte. Com foco em inovação, o cooperativismo de plataforma e a transformação digital estão entre os destaques das apresentações.
- Owning the Future: fruto de uma parceria entre o Platform Cooperativism Consortium e o Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio), irá discutir como escalar sustentavelmente as cooperativas de plataforma do sul global. A conferência ocorrerá entre os dias 4 e 6 de novembro, no Museu do Amanhã, na capital fluminense.
Momento-chave
Para Victor Barcellos, pesquisador do Departamento de Mídias do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro, “o ano de 2022 é um momento-chave para o cooperativismo brasileiro, especialmente porque as cooperativas de plataforma estão mostrando seu potencial de escalabilidade e inovação”.
“Trazer a Conferência Anual do Cooperativismo de Plataforma pela primeira vez para o Sul Global é um marco histórico capaz de aumentar a consciência sobre o cooperativismo de plataforma no país, além de conectar atores estratégicos - cooperativas, gestores públicos, empreendedores e acadêmicos - para a criação de uma economia digital solidária. O ITS está acompanhando esse movimento e empenhado em fomentar esse debate com os diversos setores da sociedade”, declarou ao InovaCoop.
Em foco
Além disso, Rafael Grohmann, coordenador do DigiLabour, participou do Global Perspectives on Platforms and Cultural Production, no dia 1° de junho. Na conferência híbrida organizada pela Universidade de Amsterdam, Grohmann apresentou seu trabalho Click Farm Platforms and Instagram Content Creators in Brazil: Infrastructures and Work Practices.
Ao redor do mundo
Se no Brasil o modelo ainda está em estágio de amadurecimento, há iniciativas que colocam o cooperativismo de plataforma em prática, em diferentes lugares do planeta. Veja essas histórias que contamos no Radar da Inovação:
- Na Driver’s Seat Cooperative, os motoristas são remunerados pelos dados gerados a partir das corridas realizadas
- A cooperativa Suíça Midata Cooperative atua desde 2015 compartilhando dados de tratamentos com o controle dos pacientes.
- A francesa CoopCycle foi criada para apoiar entregadores de aplicativos que usam a bicicleta como veículo para fornecer infraestrutura tecnológica e originar novas cooperativas.
- Na Grã-Bretanha, a Eccoo foi idealizada para colocar em contato profissionais e pessoas que precisam de cuidados especiais em seu dia a dia.
- A Smart Coopérative, plataforma Belga de cooperativas para autônomos, reúne 35 mil associados de 40 cidades, em nove países europeus.
CONCLUSÃO
Segundo Gustavo Mendes, fundador da Coonecta, o cooperativismo de plataforma está, gradativamente, ganhando espaço no Brasil. Ele acredita que o modelo precisa ser analisado como um ecossistema, e não apenas por meio de iniciativas singulares.
Mendes argumenta que o cooperativismo de plataforma precisa de um ambiente favorável ao seu crescimento. A criação desse ambiente passa por iniciativas de entidades setoriais - como o InovaCoop, da OCB -, realização de eventos, interesse das universidades e impulso de empresas mercantis, como a Coonecta.
O atual cenário é positivo, mas ainda há onde evoluir. “As grandes cooperativas poderiam olhar esse assunto com um pouco mais de atenção. Elas têm olhado muito para conexão com startups mercantis, o que é importante, mas poderiam também olhar para a conexão com startups cooperativas que têm modelos inovadores”, reflete.
Gustavo Mendes conclui: “a partir do momento em que todo o ecossistema apoiar esse surgimento de cooperativas de plataforma, vai ser natural que elas surjam”.
Mais cooperativismo de plataforma no Inovacoop
Como vimos, o cooperativismo de plataforma se apresenta como uma das principais faces da inovação dentro do ambiente cooperativista. Com esse modelo, as cooperativas se adaptam às demandas de uma nova economia, levando a cultura cooperativa ao mercado moderno, tornando-o mais ético e participativo.
No Brasil, o cooperativismo de plataforma ainda é incipiente, mas está crescendo. O estudo sobre o modelo cresce, assim como as iniciativas para seu fomento. Enxergando essa tendência, o InovaCoop já produziu diversos conteúdos com foco no tema. Confira e fique por dentro do futuro do cooperativismo!
- O que é cooperativismo de plataforma
- Desafios e oportunidades do cooperativismo de plataforma, segundo Trebor Scholz
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cooperativismo plataforma inovaçãoFonte: Inovacoop - Sistema OCB